top of page

Luísa Soares de Oliveira

O mapa da vida

I - Os destinos de férias vendem-se como qualquer produto. Praias perfeitas, céu azul e mar turquesa, indígenas amáveis, exotismo q.b. são os ingredientes perfeitos que prometem também, implicitamente, o amor e a paixão como condimentos indispensáveis para umas férias bem sucedidas. Uma vez chegados, os viajantes encontrarão o que esperavam, sem que para isso tenham de sair exageradamente das suas rotinas de período estival. A atestá-lo, o rol de fotografias (digitais, de preferência) que comprovam que se viu o que se devia ver, se fez o que se devia fazer, se foi ‘rich and beautiful’. Pelo menos uma vez por ano.
Assim, os tempos de lazer vivem de estereótipos e lugares comuns; a viagem já não é, ou rarissimamente é, fonte de conhecimento, como o foi desde Ulisses a Chatwin, por exemplo, e transformou-se sobretudo no lugar da certeza. Mesmo na Índia ou na China, os hotéis são os mesmos, as camionetas de turismo idênticas, a comida local é preterida em favor de ementas mais saudáveis e fiáveis. Olhando para a história da arte ocidental, poderíamos fazer uma analogia entre esses estereótipos e as alegorias antigas: deste lado, a imagem bem definida, com um sentido oculto que se espelha na organização imóvel dos motivos e assuntos da alegoria; do outro, a promessa de felicidade (porque é disso que se trata) para além do triângulo sexo-praia-sol de todos os destinos longínquos (a menos que se trate do barroco da Boémia em autocarro Pullman e pensão completa durante 9 dias...). A cultura ocidental, que vive da circulação das imagens, guarda bem mais da antiga função que estas exerciam do que aquilo que imagina.
Vem isto a propósito da série mais recente de Diana Costa: obras que se destacam pelo colorido exuberante e pela repetição de uma série de motivos que podemos associar às imagens divulgadas na sociedade referentes aos afectos. Corações, bocas, rostos, versos  de canções mais ou menos populares conjugam-se de obra para obra em composições que devem tanto à repetição como ao princípio da colagem. Pode dizer-se, assim, que é o ritmo a que essa repetição se produz que gera cada peça, como se ela se organizasse segundo uma mecânica própria, onde o pintor quase não interfere, a não ser para a revelar.
Numa observação mais cuidada, contudo, ocorre-nos questionar a própria existência destes motivos. É que não consistem em formas criadas a partir desse mundo de vivências e emoções que constitui o solo onde a arte nasce e toma forma, mas de pequenos ícones criados pela sociedade ultra sofisticada como é a sociedade ocidental dotados de um leque de conotações suficientemente aberto para neles caber quase tudo. A boca, as sandálias havaianas, o coração podem significar um beijo, a domesticidade ou o amor, sendo que a própria imprecisão do significado destas palavras é tão evidente que, sob este ponto de vista, acabam por se esvaziar mais e mais de conteúdo.

II – Claro que houve já uma corrente artística, a Pop, que se serviu dos objectos de uso quotidiano para se afirmar como forma de arte. Só nos seus momentos mais sofisticados, nomeadamente com Warhol e Jasper Johns, conseguiu a Pop levar-nos a reflectir sobre o modo como esses objectos chegavam até nós, ou seja, sobre o modo como a circulação dos ícones da sociedade ocidental se efectuava – frequentemente usando em seu próprio proveito as vias de comunicação que eram descobertas, aliás. De resto, na obra de Diana Costa encontra-se uma filiação mais estreita no Johns que representava repetidamente o número 5, por exemplo, numa maneira ostensivamente pictórica, do que do mundano Warhol representando desaforadamente caixas de esfregões Brillo conforme o original. É pela pequenez aparente dos motivos escolhidos que Diana Costa se aproxima de parte da obra de Johns, e pela seriedade com que o faz que se afasta da de Warhol. Até agora, a artista nunca tratou dos deuses modernos da sociedade de consumo, talvez porque todos esses deuses, incluindo as Marilyns e os Maos actuais, exibem sem decoro os respectivos pés de barro; a menos que se admita que o amor e a beleza, temas implícitos em alguns dos ícones utilizados pela artista, fazem parte dos novos altares nos quais se deve sacrificar a consciência.
Contudo, a questão das vias de circulação das imagens tem sido o grande tema subjacente à obra de Diana Costa. Numa exposição anterior, “Eu-corpo”, de 2002, a artista apresentara peças realizadas em técnica mista sobre diversos suportes que se construíam a partir da sobreposição aparente de imagens translúcidas facilmente identificáveis. Nestas, dominavam as imagens precisas, quase de carácter científico, de órgãos, como o coração e as costelas, que se imbricavam umas nas outras através de circuitos visuais e gráficos. As obras indicavam uma reflexão sobre a sua própria génese no espírito da autora; e se, em certa medida, se tratava de um discurso centrado sobre o processo – “não pinto o que vejo ou sinto, mas sim o modo como vejo ou sinto”-, já na época Diana Costa utilizava os códigos rígidos do desenho científico para exprimir o que pretendia. Digamos pois que a artista se serve de um arquivo público de imagens para trabalhar, um arquivo que não só lhe é proporcionado pela arte contemporânea, mas pela sociedade ocidental no seu todo. E pelas diversas áreas em que essa sociedade exprime a sua criatividade: da ciência à música popular ou aos produtos de consumo corrente.

III – E, já que falámos de Pop, olhemos um pouco mais para trás na história da arte e detenhamo-nos em Duchamp e no esvaziamento de sentido que os ready-mades inventados por ele sofreram. Um cabide pregado ao chão deixa de cumprir a sua função, embora o significante e o significado lá continuem, mesmo que acrescidos (ou talvez por essa mesma razão) de uma nova carga semântica (isto é uma obra de arte) que o transforma precisamente em ready-made. Tal como os motivos utilizados serialmente por Diana Costa, funcionam triangularmente; e é por essa via que o trabalho desta jovem artista, afinal, acaba por se aproximar mais e mais da escultura: como esta área específica da obra duchampiana, renega o seu uso primeiro e faz-nos esbarrar com a quase impossibilidade de leitura. A não ser pelo processo, sempre o processo; e o processo a partir do qual as imagens se originam, se materializam, se concretizam.

IV - Um outro Duchamp, o que tomou a identidade de Rrose Sélavy, também reflectiu sobre a possibilidade da comunicação das imagens, a sua origem e o seu destino. Mais do que com a criação do ready-made, o trabalho do heterónimo Rrose Sélavy sabia que Eros, o Amor antigo dos gregos, era o deus que possibilitava todas as ligações, incluindo a ligação da arte (mesmo que a arte fosse a da poesia, como Platão a entendia) com o artista ou o espectador. O próprio jogo de palavras com o nome de Rrose (Eros, c’est la vie) é já uma possibilidade de ligação, uma abertura do espírito à multiplicidade de conceitos que decorrem da associação fonética.
Sobre o lugar onde essa abertura decorre, contudo, Duchamp não se pronunciava, aliás de acordo com a sua falta de interesse pela  teoria de cariz mais literário. A esta, preferia as listas de palavras, as frases misteriosas, as indicações tão sumárias e codificadas como as de uma receita alquímica. E, se as ligações eram o domínio de Rrose Sélavy, gostava também de acentuar o carácter mecânico e serial das relações humanas; em O Grande Vidro, o desejo é reduzido a um fluido que faria mover toda a zona dos celibatários, isolados para sempre da noiva expectante... Mecânica que voltamos a encontrar na obra de Diana Costa, justamente no ritmo a que as frases musicais chegam e se concretizam em imagens.
Esta mecânica tem algo de irracional, algo que não é explicável pelas teorias artísticas, como Rosalind Krauss aliás já afirmou. Parece provir da constatação de que o corpo é uma máquina, e que no seu ritmo de trabalho e de vida se aproxima muito das outras máquinas, estas fabricadas pelo homem, mas definitivamente não-humanas. Mas isto já nos levaria a indagar sobre o que é humano, e o que não o é; e este é caminho para que toda a obra da jovem Diana Costa  acaba por nos conduzir.

Luísa Soares de Oliveira
Junho de 2005.

bottom of page