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Celso Martins

Em Trânsito

 

A geometria esteve sempre presente na história da pintura ocidental, habitando como princípio constitutivo os diferentes géneros, da paisagem ao retrato, passando pela natureza morta. Mas é no século XX – com o caminho multidireccional que se empreende rumo à abstracção - que ela deixa de ser vista como um elemento instrumental e se transforma num «assunto» da pintura.
Na verdade, a geometrização significou um dos programas possíveis – o outro remete-nos para as experiências informalistas – de uma formulação abstracta assente numa gramática composta por algumas, poucas, formas arquetípicas, que podia substituir a vocação representativa da pintura sem que ela perdesse a sua razão de ser.
É o que acontece nas composições geométricas abstractas de Kandinsky; mas também com a redução da imagem da natureza a grelhas de Piet Mondrian ou, ainda, no caso mais radical, com Malevitch, no momento em que chega ao «Quadrado negro sobre fundo branco».
Este programa possui algo de paradoxal. Por um lado, furta-se a uma confirmação do real observável, das suas aparências, por outro, constroi-se com formas que identificamos imediatamente como o círculo, o quadrado ou o rectângulo. É claro que estas formas ou os seus correspondentes tridimensionais afloram no trabalho de artistas que não alcançaram (ou, à altura, não haviam chegado ainda) a abstracção. Pense-se nas naturezas mortas de Cézanne, no Picasso cubista, ou no trabalho de Malevitch anterior ao suprematismo.
À pintura, a geometria oferece uma gramática, fechada ou aberta, pura ou contaminada, conforme foi sendo diferentemente interpretada historicamente. Em qualquer dos casos, a importância da geometria não é alheia a uma redução da imagem da realidade a uma construção modular, a uma tentativa de encontrar um sistema interno à pintura, que não perde, porém, o contacto com uma certa ideia de identificação universal com o que é representado.
A pintura de Diana Costa convoca muitas destas questões sem se posicionar na imediata continuidade histórica delas. Como na obra de outros jovens artistas, a utilização da geometria como possibilidade de objectivação do mundo permanece um instrumento no seu percurso. Já não para se proceder a uma decantação  essencialista da pintura mas, pelo contrário, para fazer surgir nela o poder da metáfora e da alegoria. A série «When we Build let us Think that we Build forever» é disso um exemplo paradigmático. Todas as pinturas nela incluídas tomam a arquitectura ou o mobiliário como tema imediatamente visível. Não para salientar o ambiente cultural e tecnológico de uma época, mas para se aproximarem de um lugar onde, aparentemente, tudo parece funcionar ao abrigo de uma mecânica automática e, num momento seguinte, afirmarem uma fuga possível a esse  determinismo. Atente-se por um momento no título, e na sua referência à duração, à perenidade e solidez – de que alguma arquitectura moderna quis ser emblema máximo – e confronte-se esse «statement» com o modo como a arquitectura nos é apresentada nesta pintura: esventrada, com uma transparência invasora e etérea que é precisamente a negação dessa solidez. Estamos, pois, no território da ironia e do paradoxo.

II

 

Estas pinturas constroem-se por estratos, acumulações de procedimentos e materiais. Estudos, plantas de edifícios pré-existentes agregam-se à tela através do desenho e da colagem para serem depois pintados ou cobertos com novas camadas, novos padrões, criando transparências, transições de tons, de motivos inscritos na pintura. O seu destino é definir um fluxo, um trânsito permanente que ataca as coisas mais sólidas como um vírus. A pintura já não define realidades estáveis, expressa o transitório, o oblíquo e o elíptico. Depois, procede a uma acumulação de imagens, padrões decorativos, daqueles que se usam por vezes nas decorações de interiores ou num simples papel de embrulho. Todas estas adições transformam a arquitectura num lugar esquálido, cuja organicidade revelada se insinua como uma forma de anatomia.
Do ponto de vista iconográfico, trata-se de assimilar rumores visuais de dimensões díspares da vida, realidades enormes ou ínfimas, e de as incorporar numa dinâmica que responde de um modo pictórico à própria circulação vivencial e à experiência da cidade, dos seus códigos, objectos e edifícios. O que Diana faz é transformar a pintura num roteiro fidedigno dessa experiência, devolvendo-a, assim, como experiência potencial ao espectador. Em vez de uma preposição literária, narrativa ou linear, ela pretende que essa circulação se viva como processo pendular entre o reconhecimento e a estranheza. Os objectos e edifícios que convoca apelam a uma certa ideia de tangibilidade (reforçada em algumas telas por aplicações de materiais tridimensionais), ao mesmo tempo, são um eco de múltiplas experiências sequenciais ou descontínuas que vivemos no quotidiano. As suas pinturas tornam sincrónicas essas experiências, evidenciando os seus ritmos, efabulando relações entre elas e, com isso, estabelecendo, nos seus parâmetros de localização, um campo biográfico.

III

 

Já sugerimos, em cima, que esta pintura funciona como uma placa giratória entre um campo público e social associado ao espaço urbano, e outro que remete para uma experiência pessoal, singular e irrepetível. Dizê-lo é constatar que não se trata de campos estanques, mas também que o indivíduo que habita o colectivo e se reencontra nos espaços destinados ao privado é o verdadeiro «pivot» desta teia de relações.  Diana Costa interpreta esta intercepção como um exercício de circulação. Trata-se de um mecanismo que lembra inevitavelmente, a figura do «Flaneur» sugerida por Charles Baudelaire como o grande intérprete da vida das cidades, que por elas circula, absorvendo a experiência colectiva e devolvendo-a em forma de arte. Essa figura supõe um desvanecimento ou diluição do sujeito na multidão, de modo a que este estabeleça uma empatia com a cidade. As composições de Diana Costa acentuam processos que reforçam esta preposição. Por um lado, há uma dimensão serial que entrelaça objectos e estruturas em arranjos rítmicos, sugerindo configurações magritteanas que qualificam os objectos para além da sua funcionalidade ou os libertam das leis da física, tornando-os entidades portadoras de uma história e de uma estética. Por outro, se a figura humana está sempre ausente, ela não deixa de ser o elemento invisível que tudo une. Estes são espaços para habitar e objectos para utilizar e o rumor que transportam consigo excede sobremaneira a sua funcionalidade. Do mesmo modo que a pintura metafísica se serve dos espaços e dos objectos para exprimir uma inquietação existencial, teatralizada pela pintura, Diana Costa oferece-nos um caleidoscópio de afectos, emoções e pensamentos, cuja formulação visual exprime as dinâmicas de um trânsito permanente. Nesse sentido, pode dizer-se que a pintura de Diana se aproxima da vida, não propriamente através de uma convocação naturalista, mas pela explanação dos seus movimentos vitais, deixando-nos, em cada tela, os emblemas dessa mudança.



Celso Martins
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2007

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