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Hugo Dinis

As Cidades (In)visíveis


Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior atenção e curiosidade que a qualquer outro enviado seu ou explorador.
(…)
Só nos relatos de Marco Polo, Kublai Kan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao roer das térmitas.

Assim, começa Italo Calvino “As Cidades Invísiveis”. É através da descrição, por vezes pormenorizada, por vezes fugaz, da vivência em cidades/lugares estranhos que o autor reflecte sobre uma possível verdade daquilo que se vê e, consequentemente, da forma como se escreve ou se pinta essa mesma visão. Este saber-fazer, sempre intermitente, porque tão complexo como simplista, revela que a realidade pessoal pode-se transformar numa realidade social.
A pintura de Diana Costa pode ser vista pelo prisma acima descrito. Segundo um modus operandi muito meticuloso, onde após uma intensa pesquisa de imagens virtuais de objectos reais - cidades, mapas, casas, ruas - e de sucessivos esboços digitais, a artista envolve-se num processo de elaboração pictórica através de inúmeras camadas de colagens e de tinta. Esta construção torna o espaço anónimo, que se transforma à medida que é percorrido pelos nossos olhos ou pelos nossos pares de sapatos preferidos. Deste modo, as cidades/lugares são mais do que construções de espaços imaginários ou ideais – são perspectivas intencionais sobre determinados lugares. A imagem final não é desvelada meramente por aquilo que pode ser visto mas, também (ou mesmo o mais importante), por aquilo que ficou invisível.
Através da decifração de alguns elementos pictóricos poderá ser visível a construção de uma identidade individual ou íntima. Mas será verdadeira? Será que podemos rever a artista nestes lugares e nesta vivência? Ou será que projectamos aquilo que queremos nestas imagens de um possível lugar que conhecemos e onde também nos reconhecemos?
Contudo, será necessário clarificar que cada visão individual é por si só um modo correcto de ver o mundo e que cada visão não se encerra em si própria. Então, será, talvez, o confronto entre diversas formas de discutir o modo mais justo de alcançar uma verdade colectiva negociada entre todos os participantes activos.
Feliz ou infelizmente, as perguntas ficam sempre por responder, mas fica na intenção de cada um escolher se a verdade reside na ficção ou no documentário, ou em algo intermédio. Ou seja, as pinturas podem ser não só um ponto de vista sobre uma determinada realidade mas, também, podem ser a melhor forma de ver essa mesma realidade. É nesta indeterminação em que residem as pinturas de Diana Costa: as luxuosas e requintadas imagens resistem ao tempo e persistem na memória colectiva.



 

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá Carneiro – Fevereiro 1914

 


Dezembro 2008, Hugo Dinis

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O encontro entre as obras de Diana Costa e de José Lourenço reside num assunto muito comum das sociedades contemporâneas, a saber: a urbanidade. Cada um dos artistas, num jeito muito próprio, representa a vivência urbana como premissa inicial no seu trabalho. Com concretizações finais muito diferentes, os dois artistas parecem discutir uma mesma ideia: as consequências da ausência de uma determinada acção ou acontecimento.
José Lourenço representa espaços vazios, corredores, acessos, escadas e plataformas de uma rede de metropolitano, onde a inexistência indivíduos é evidente. De um modo frio e inóspito os desenhos e pinturas do artista apresentam uma cidade imaculada onde não se vislumbra a presença humana, nem o uso que estes transeuntes fazem dos espaços que consomem. Esta visão de fim da humanidade leva as ideias de decadência e despersonalização das cidades a um limite ainda mais aterrador. Veiculando que a ideia utópica de cidade, como excelência da vida contemporânea, só é possível, ou pelo menos ideal, despojada das pessoas que dela usufruem, o confronto com a ausência é, deste modo, algo incontornável.
Diana Costa apresenta uma nova série de trabalhos que se centram na representação de indivíduos isolados e recortados que flutuam nas paredes do espaço expositivo. Contudo, esta presença humana é retraída através das posições em desequilíbrio com que estas figuras são representadas. A suspensão das acções que ocorrem denota um bem-estar aparente. Parece que as personagens celebram a sua vida urbana num espaço idílico. A incerteza das suas acções revela a possibilidade do bem-estar nos lugares da sua vivência. Os espaços foram apagados como forma de exaltar as acções que nele decorrem. Assim, suspensa do seu espaço natural, entenda-se a cidade, a vida liberta-se promovendo o benefício individual.
A definição de cidade poderá ser entendida como uma numerosa aglomeração de população, com acesso a determinados serviços económicos, sociais, comerciais, industriais e culturais. Mais, a urbe corresponde a um modelo organizado e programado da vida comunitária idealizada para o bem-estar da comunidade que nela vive. Em oposição ao rural, a cidade foi conotada como um espaço de influências negativas, onde o crime e a vida decadente têm um campo fértil para se desenvolver. Historicamente, segundo o Livro do Génesis do Antigo Testamento, a primeira cidade terá sido fundada pelo primeiro homicida. Após matar o seu irmão Abel, Caim, condenado a ser errante e vagabundo, fixa-se numa região isolada do Éden iniciando a sua descendência e cria uma comunidade urbana. Segundo esta versão religiosa, a cidade revela a despersonalização do indivíduo conotando-o com a decadência e o mal, como se vem a confirmar posteriormente com a destruição da cidade de Sodoma. Assim, as grandes concentrações de pessoas tendem a aumentar, talvez exponencialmente, o gosto e o desejo da natureza humana pelo ser-sombrio e ser-decadente nutrindo, deste modo, uma forma inexpressiva de edificar os lugares da sua vivência e sobrevivência.
Por um lado, a ausência de figuras humanas nas obras de José Lourenço que despovoam o espaço urbano demonstra a inabilidade e, até, a inutilidade da espécie humana em coabitar com o espaço que idealmente para si construiu. E, pelo contrário, nas obras de Diana Costa a ausência do espaço que envolve as figuras mostra a harmonia existente entre ambos. Esta dupla constatação acentua a perversidade dos desencontros urbanos onde, de forma egoísta ou altruísta, cada qual usa e abusa desenfreadamente de um mesmo espaço na esperança de este se tornar num local de encontro entre todos.

 

Hugo Dinis, Agosto 2010

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