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David Barro

NETWORK SYSTEMS / TRAÇANDO CONEXÕES ENTRE AS PINTURAS DE DIANA COSTA E JOSÉ LOURENÇO
É possível que num primeiro olhar se afigure estranha qualquer ligação entre dois artistas como Diana Costa e José Lourenço. A primeira resolve a partir da figura toda uma série de gestos e movimentos que flutuam numa espécie de vazio sem cena; o segundo, esvazia as suas cenas de figuras congelando qualquer indício gestual numa obra de limpeza absoluta. Por um lado, a parte emocional; por outro, uma parte mais física. No entanto, um olhar mais atento de imediato nos faz descobrir uma série de conexões virtualmente fictícias e escondidas que induzem para esses sistemas que se encarregam de intitular a cena: Network Systems.
Rapidamente penso em como Jacques Derrida assinala que um texto não é um texto se não se esconder ao primeiro olhar, ao primeiro alcance, a lei da sua composição e a regra do seu jogo. Um texto, além do mais, é sempre imperceptível. “A lei e a regra não se refugiam na inacessibilidade de um segredo, simplesmente nunca se entregam, no presente, a nada que se possa rigorosamente denominar uma percepção”, diz en La dissémination. Derrida descreve como o ocultamento da textura pode, em qualquer caso, tardar séculos a desfazer a sua tela. “A tela que envolve a tela. Séculos a desfazer a tela. Reconstruindo-a como um organismo. Regenerando indefinidamente o seu próprio tecido por detrás da marca que corta, a decisão de cada leitura”. Acaso não é esta a mesma prática da pintura?
É verdade que falar de pintura já não é o que era. Como Thierry de Duve assinalou, a pintura já não é uma técnica, mas uma tradição. A pintura é uma ideia; uma forma de pensar, seguramente, sobre a própria pintura na sua possibilidade de apreender o mundo. Podíamos dizer que da pintura só nos resta o próprio termo “pintura” que actua como caleidoscópio de significados. Assim, tudo o que se disse sobre a pintura seria pintura em si mesma enquanto manifestação de uma atitude, de um posicionamento que implique que o artista re-pense continuamente o seu lugar, e se pergunte não só porque continua a pintar mas também com que finalidade e como pode continuar a fazê-lo.
Entendo assim o que João Lima Pinharanda lucidamente indicava: “A pintura de Diana Costa mantém-nos numa dúvida permanente”. Efectivamente, há nela uma memória e um excesso. Havia e há. Porque se a pintura actual de Diana Costa fala de alguma coisa, é de conexões, de sugestões. Neste caso, a partir de figuras que se mesclam e entrelaçam a partir de fenómenos como o facebook ou qualquer outro sistema de ligações na Internet. Mas também nestas obras que José Lourenço apresenta podemos intuir uma série de conexões subterrâneas, que neste caso são as que pressupomos ao tratar-se de pinturas de interiores de estações de metro, paradigma desse desenho hipertextual da vida contemporânea.
No fundo, tudo se identifica com o que Roland Barthes definiu como “texto ideal”, pensando num texto trançado que constituíra uma espécie de galáxia de significados, um texto reversível. Estamos a falar de uma pintura que é experiência e ficção, uma procura não linear, muitas vezes seguindo uma espécie de serendipidade. O leitor dessa pintura define e decide o seu caminho de leitura, alterando o centro, a partida, o eixo de organização. Nesta exposição estabelecemos, portanto, um caminho descentralizado, aberto, sem hierarquias. Uma alternativa para o espectador. Moulthrop denominou-o “promiscuidade textual”. E todos estes percursos gerados, introduzem distintas possibilidades de interpretação que nos levam, em último caso, a pensar na poesia. Porque se fracturam os significados e mensagens originais para fazer mais rica a leitura graças ao que em semiótica se denomina “desvio poético”. Assim, o hipertexto desenhado de Network Systems aproximar-se-ia a um puzzle com o aspecto perceptivo de um zapping, onde aquilo que é sugerido é muito mais eficaz que o sugerido por uma coisa, se seguimos ao Borges.
Pensemos nas teorias de Michel Serres, para quem a história da ciência está sujeita à turbulência, ou seja, a conexões aleatórias de todo o tipo, entre diversas áreas. Serres assinala como a ciência avança a partir do impredizível e do inesperado. “Tanto o mundo quanto os objectos, tanto os corpos quanto a minha própria alma estão, no momento do seu nascimento, à deriva. À deriva ao largo da descida pelo plano inclinado. E isto significa, como é comum, que se desfazem e morrem irremediavelmente (…). A deriva é o conjunto do tempo: a aurora do aparecimento, vida limitada pela finitude e desagregação, explosão aleatória das múltiplas temporalidades no espaço infinito”. Nesta exposição essa descontinuidade e indefinição, essa turbulência, é produto desse experimentar contínuo, desse pintar continuamente como experiência.
Porque a experiência é a apropriação do real, quer seja através de lugares (José Lourenço) ou de pessoas (Diana Costa), para gerar outra realidade, a pictórica. Ambos sintetizam essa realidade, transformando-a numa espécie de artificialidade; no caso de José Lourenço, sem texturas, como que escondendo a qualidade interior destes espaços para desenvolvê-la numa espécie de exterioridade opaca e vazia; no caso de Diana Costa, através de uma colagem eterna de imagens que ilustram as conexões da actividade humana. Ambos nos falam de uma realidade metafórica, de um espelho que não é mais do que algo que existe em potência e não em acto, uma realidade indiscutivelmente virtual. E essa realidade fragmentada, essa fissura com forma de secreto, adverte-nos para a dificuldade que teremos para apreendê-la, para saber se estamos diante de uma realidade verdadeira. Porque a experiência de viver a contemporaneidade é descontínua, como na obra de Diana Costa, desde sempre, a interferência abriu passagem a novas circulações, a novos mapas e hipertextos de imagens que advertem para como o emocional não é mais do que uma espécie de caminho, um trajecto de oscilação permanente, um estado de passagem ou isso que definem como Network Systems.

David Barro

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